quinta-feira, 12 de abril de 2007

O Ontem poderia ser o hoje e o amanhã...

GENTILEZA: O PROFETA DO AMOR. [Marcelo Migliaccio]

José Datrino era um homem que hoje em dia não se vê mais. Atualmente, muitos pregam para enriquecer - e ele nunca aceitou dinheiro. Agora se dorme em aeroportos, mas ele correu o Brasil de carona. Na contramão do sexo banalizado, dizia que "se a saia sobe, a moral desce". Nesta quarta-feira, o profeta Gentileza, figura folclórica do caos carioca até morrer, em 1996, faria 90 anos. As homenagens começam às 6h, em frente à Rodoviária Novo Rio, onde Gentileza deixou, nas pilastras do viaduto do Caju, 56 recados à posteridade, criticando principalmente a ganância que levou o planeta à situação em que se encontra. Organizado pelo Movimento Rio Com Gentileza, o ato terá artistas plásticos, poetas, atores, exibição declipes, filmes e música. Autor dos curtas-metragens Gentileza (1994) e Por Gentileza (2002), o cineasta Dado Amaral estará no evento e diz que as mensagens deixadas são cada vez mais atuais.- Ele falava muito da importância de preservarmos a natureza e ninguém dava ouvidos - conta Dado, que prepara agora um longa sobre o profeta.- Agora esse problema do meio ambiente virou uma coisa gritante. Nascido em Cafelândia, no interior de São Paulo, João Datrino abandonou a zona rural e veio para o Rio, onde aprendeu a ler, casou eteve cinco filhos. Virou dono de uma transportadora, mas, quando o Gran Circo Norte-Americano pegou fogo em Niterói, em 17 de dezembro de1961, matando cerca de 400 pessoas, João também morreu e nasceu Gentileza.- Ele parou o caminhão no terreno do circo, onde só havia cinzas erestos, cercou a área, limpou, abriu um poço, fez uma horta e batizou o lugar de Paraíso do Gentileza - lembra o professor do Departamentode Arte da Universidade Federal Fluminense Leonardo Guelman, autor datese Universo Gentileza (1997) e do livro Brasil - Tempo de Gentileza (editora Eduff, 2000), que será relançado amanhã, às 18h, na livrariada UFF, em Icaraí. Leonardo abordou Gentileza em 1992, quando o viu pelas ruas consolando sem-teto e distribuindo flores e palavras fraternas.- Solícito, ele me deu o telefone da filha, Maria Alice (que também estará nas homenagens de hoje). Fui lá e o entrevistei para minha tese de filosofia, como mito contemporâneo.Em torno do homem de longa barba que andava de túnica por todo o Estado do Rio - e também pelas demais regiões do Brasil - surgiram muitas lendas, a principal delas de que ele teria se tornado um andarilho da paz após perder toda a família no trágico incêndio do circo. Não chegou a tanto. Além de não aceitar dinheiro, só comida e pernoite, Gentileza nun capregou qualquer religião.- Era um cristianismo primitivo, mas não católico. Ele dizia: "O padre está esmolando; o pastor, pastando; e o papa, papando. Papão." - lembra Leonardo.Em seu segundo curta, feito já depois da morte do profeta, Dado Amaral teve a experiência de deixar a barba crescer, vestir-se como Gentileza e sair pelas ruas. Lembra as manifestações de afeto das pessoas, mas concluiu que não era mole fazer o que aquele homem fez durante 44anos.- Ele passava horas na pilastra 1 do elevado, em frente à rodoviária. É um lugar inóspito, muito barulho, poluição. Abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas é fácil - compara o cineasta. Gentileza pouco parava na casa da filha, em Guadalupe (Zona Norte).Quando estava lá, costurava suas roupas, escrevia, pintava estandartes. Sem qualquer traço de amargura, não perdia a cordialidade nem ao topar com os idiotas da objetividade.- Quando duvidavam da sua sanidade, ele dizia: "Maluco pra te amar, louco pra te salvar" - conta Leonardo. As 56 pilastras em que Gentileza escreveu o sonho de um mundo melhor hoje são patrimônio cultural do município. Chegaram a ser apagadas pela Companhia de Limpeza Urbana após uma onda de pichações em igrejas às vésperas da visita de João Paulo II, em 1997. A cantora MarisaMonte sintetizou os protestos na música Gentileza, do CD Memórias, crônicas e declarações de amor: "Apagaram tudo/ Pintaram tudo decinza/ Só ficou no muro/ Tristeza e tinta fresca".- Fico feliz que, ao completar 90 anos, a figura e a mensagem dele sejam lembradas em um momento em que cultuar o cuidado e a gentileza é algo tão necessário - festeja Marisa Monte. Hoje, a Comlurb, mea culpa feita, apóia as homenagens e fará nova limpeza das pilastras, restauradas em 1999. Um pedido de perdão ao profeta que, segundo o teólogo Leonardo Boff, deveria ser o padroeiro do Rio.

"Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro
Tristeza e tinta fresca

Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras
E as palavras de Gentileza
Por isso eu pergunto
À você no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria
O mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o Profeta"

[Marisa Monte – Gentileza]

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